segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Poemas de Vinicius de Moraes



A ausente

Amiga, infinitamente amiga 
Em algum lugar teu coração bate por mim 
Em algum lugar teus olhos se fecham à ideia dos meus. 
Em algum lugar tuas mãos se crispam, teus seios 
Se enchem de leite, tu desfaleces e caminhas 
Como que cega ao meu encontro... 
Amiga, última doçura 
A tranqüilidade suavizou a minha pele 
E os meus cabelos. Só meu ventre 
Te espera, cheio de raízes e de sombras. 
Vem, amiga 
Minha nudez é absoluta 
Meus olhos são espelhos para o teu desejo 
E meu peito é tábua de suplícios 
Vem. Meus músculos estão doces para os teus dentes 
E áspera é minha barba. Vem mergulhar em mim 
Como no mar, vem nadar em mim como no mar 
Vem te afogar em mim, amiga minha 
Em mim como no mar...



A Berlim
(Rio de Janeiro)
Vós os vereis surgir da aurora mansa 
Firmes na marcha e uníssonos no brado 
Os heroicos demônios da vingança 
Que vos perseguem desde Stalingrado. 

As mãos queimadas do fuzil candente 
As vestes podres de granizo e lama 
Vós os vereis surgir subitamente 
Aos heroicos prosélitos do Drama. 

De início mancha tateante e informe 
Crescendo às sombras da manhã exangue 
Logo o vereis se erguer, o Russo enorme 
Sob um sol rubro como um punho em sangue. 

E ao seu avanço há de ruir a Porta 
De Brandemburgo, e hão de calar os cães 
E então hás de escutar, Cidade Morta 
O silêncio das vozes alemãs.


A Bomba Atômica
Dos céus descendo 
Meu Deus eu vejo 
De pára-quedas? 
Uma coisa branca 
Como uma fôrma 
De estatuária 
Talvez a fôrma 
Do homem primitivo 
A costela branca! 
Talvez um seio 
Despregado à lua 
Talvez o anjo 
Tutelar cadente 
Talvez a Vênus 
Nua, de clâmide 
Talvez a inversa 
Branca pirâmide 
Do pensamento 
Talvez o troço 
De uma coluna 
Da eternidade 
Apaixonado 
Não sei indago 
Dizem-me todos 
É A BOMBA ATÔMICA.
Vem-me uma angústia. 
Quisera tanto 
Por um momento 
Tê-la em meus braços 
A coma ao vento 
Descendo nua 
Pelos espaços 
Descendo branca 
Branca e serena 
Como um espasmo 
Fria e corrupta 
Do longo sêmen 
Da Via Láctea 
Deusa impoluta 
O sexo abrupto 
Cubo de prata 
Mulher ao cubo 
Caindo aos súcubos 
Intemerata 
Carne tão rija 
De hormônios vivos 
Exacerbada 
Que o simples toque 
Pode rompê-la 
Em cada átomo 
Numa explosão 
Milhões de vezes 
Maior que a força 
Contida no ato 
Ou que a energia 
Que expulsa o feto 
Na hora do parto. 






A bomba atômica II
A bomba atômica é triste 
Coisa mais triste não há 
Quando cai, cai sem vontade 
Vem caindo devagar 
Tão devagar vem caindo 
Que dá tempo a um passarinho 
De pousar nela e voar... 
Coitada da bomba atômica 
Que não gosta de matar! 

Coitada da bomba atômica 
Que não gosta de matar 
Mas que ao matar mata tudo 
Animal e vegetal 
Que mata a vida da terra 
E mata a vida do ar 
Mas que também mata a guerra… 
Bomba atômica que aterra! 
Pomba atônita da paz! 

Pomba tonta, bomba atômica 
Tristeza, consolação 
Flor puríssima do urânio 
Desabrochada no chão 
Da cor pálida do helium 
E odor de rádium fatal 
Lœlia mineral carnívora 
Radiosa rosa radical. 

Nunca mais, oh bomba atômica 
Nunca, em tempo algum, jamais 
Seja preciso que mates 
Onde houve morte demais: 
Fique apenas tua imagem 
Aterradora miragem 
Sobre as grandes catedrais: 
Guarda de uma nova era 
Arcanjo insigne da paz! 





Bomba Atômica III
Bomba atômica, eu te amo! és pequenina 
E branca como a estrela vespertina 
E por branca eu te amo, e por donzela 
De dois milhões mais bélica e mais bela 
Que a donzela de Orleans; eu te amo, deusa 
Atroz, visão dos céus que me domina 
Da cabeleira loura de platina 
E das formas aerodivinais 
- Que és mulher, que és mulher e nada mais! 
Eu te amo, bomba atômica, que trazes 
Numa dança de fogo, envolta em gazes 
A desagregação tremenda que espedaça 
A matéria em energias materiais! 
Oh energia, eu te amo, igual à massa 
Pelo quadrado da velocidade 
Da luz! alta e violenta potestade 
Serena! Meu amor, desce do espaço 
Vem dormir, vem dormir no meu regaço 
Para te proteger eu me encouraço 
De canções e de estrofes magistrais! 
Para te defender, levanto o braço 
Paro as radiações espaciais 
Uno-me aos líderes e aos bardos, uno-me 
Ao povo, ao mar e ao céu brado o teu nome 
Para te defender, matéria dura 
Que és mais linda, mais límpida e mais pura 
Que a estrela matutina! Oh bomba atômica 
Que emoção não me dá ver-te suspensa 
Sobre a massa que vive e se condensa 
Sob a luz! Anjo meu, fora preciso 
Matar, com tua graça e teu sorriso 
Para vencer? Tua enérgica poesia 
Fora preciso, oh deslembrada e fria 
Para a paz? Tua fragílima epiderme 
Em cromáticas brancas de cristais 
Rompendo? Oh átomo, oh neutrônio, oh germe 
Da união que liberta da miséria! 
Oh vida palpitando na matéria 
Oh energia que és o que não eras 
Quando o primeiro átomo incriado 
Fecundou o silêncio das Esferas: 
Um olhar de perdão para o passado 
Uma anunciação de primaveras!





A cidade antiga
Houve tempo em que a cidade tinha pelo na axila 
E em que os parques usavam cinto de castidade 
As gaivotas do Pharoux não contavam em absoluto 
Com a posterior invenção dos kamikazes 
De resto, a metrópole era inexpugnável 
Com Joãozinho da Lapa e Ataliba de Lara. 

Houve tempo em que se dizia: LU-GO-LI-NA 
U, loura; O, morena; I, ruiva; A, mulata! 
Vogais! tônico para o cabelo da poesia 
Já escrevi, certa vez, vossa triste balada 
Entre os minuetos sutis do comércio imediato 
As portadoras de êxtase e de permanganato! 

Houve um tempo em que um morro era apenas um morro 
E não um camelô de colete brilhante 
Piscando intermitente o grito de socorro 
Da livre concorrência: um pequeno gigante 
Que nunca se curvava, ou somente nos dias 
Em que o Melo Maluco praticava acrobacias. 

Houve tempo em que se exclamava: Asfalto! 
Em que se comentava: Verso livre! com receio... 
Em que, para se mostrar, alguém dizia alto: 
"Então às seis, sob a marquise do Passeio..." 
Em que se ia ver a bem-amada sepulcral 
Decompor o espectro de um sorvete na Paschoal 

Houve tempo em que o amor era melancolia 
E a tuberculose se chamava consumpção 
De geométrico na cidade só existia 
A palamenta dos ioles, de manhã... 
Mas em compensação, que abundância de tudo! 
Água, sonhos, marfim, nádegas, pão, veludo! 

Houve tempo em que apareceu diante do espelho 
A flapper cheia de it, a esfuziante miss 
A boca em coração, a saia acima do joelho 
Sempre a tremelicar os ombros e os quadris 
Nos shimmies: a mulher moderna... Ó Nancy! Ó Nita! 
Que vos transformastes em dízima infinita... 

Houve tempo... e em verdade eu vos digo: havia tempo 
Tempo para a peteca e tempo para o soneto 
Tempo para trabalhar e para dar tempo ao tempo 
Tempo para envelhecer sem ficar obsoleto... 
Eis por que, para que volte o tempo, e o sonho, e a rima 
Eu fiz, de humor irônico, esta poesia acima.




A cidade em progresso
A cidade mudou. Partiu para o futuro 
Entre semoventes abstratos 
Transpondo na manhã o imarcescível muro 
Da manhã na asa dos DC-4s 

Comeu colinas, comeu templos, comeu mar 
Fez-se empreiteira de pombais 
De onde se vêem partir e para onde se vêem voltar 
Pombas paraestatais. 

Alargou os quadris na gravidez urbana 
Teve desejos de cúmulos 
Viu se povoarem seus latifúndios em Copacabana 
De casa, e logo além, de túmulos. 

E sorriu, apesar da arquitetura teuta 
Do bélico Ministério 
Como quem diz: Eu só sou a hermeneuta 
Dos códices do mistério... 

E com uma indignação quem sabe prematura 
Fez erigir do chão 
Os ritmos da superestrutura 
De Lúcio, Niemeyer e Leão. 

E estendeu ao sol as longas panturrilhas 
De entontecente cor 
Vendo o vento eriçar a epiderme das ilhas 
Filhas do Governador. 

Não cresceu? Cresceu muito! Em grandeza e miséria 
Em graça e disenteria 
Deu franquia especial à doença venérea 
E à alta quinquilharia. 

Tornou-se grande, sórdida, ó cidade 
Do meu amor maior! 
Deixa-me amar-te assim, na claridade 
Vibrante de calor!


Um comentário: